Esta não é uma daquelas histórias, de alguém que saiu para comprar cigarros e voltou sete anos depois. Mas podia ser. Francisco Sande e Castro partiu em 2012 e voltou ontem; depois de ter dado a Volta ao Mundo, aos comandos de uma moto. Percorreu mais de 140.000 quilómetros com a mesma Honda Crosstourer…
Com uma moto de 1200 cc, pesada para os traçados em todo terreno, Francisco Sande e Castro nem por isso deixou de aventurar-se; fora da estrada, sublinhe-se! Foram 62 os países visitados nesta enorme viagem. “A última grande viagem da vida”, como nos confessava ao chegar a Lisboa. Mas não era para ter ido tão longe.
“Quando apresentei a ideia à Honda, tinha pensado num projecto que talvez demorasse apenas um par de anos”, contou-nos. Sande e Castro ficou conhecido como piloto; dividiu-se entre as pistas e o todo terreno, pois alinhou duas vezes no “Dakar”, correu de moto, de automóvel e jipe.
Uma viagem que vai dar…dois livros!
E trabalhou também como jornalista. Nas páginas do extinto semanário O Independente, assinou crónicas hilariantes. Sempre à volta do mesmo tema: os automóveis, que analisava sem papas na língua. Daí que para Sande e Castro, escrever um livro sobre esta volta ao mundo é uma coisa, digamos, natural.
E se a viagem afinal se prolongou por sete anos, desviando-se do objectivo inicial de dar “apenas” a volta à circunferência da terra, as memórias não cabem num livro. Por isso, Francisco Sande e Castro vai contar tudo em dois volumes. O primeiro, aliás, já está em andamento, para ser publicado em Junho próximo. O segundo “deverá sair lá para o fim do ano”, promete!
“Neste primeiro livro, conto toda a viagem desde a saída de Lisboa até chegar a Timor-Leste. Pelo meio, atravessei a Europa toda, contornando o Mediterrâneo até à Turquia. Depois, passei para o Irão, onde uma fotografia me ia estragando a viagem”, revelou Sande e Castro.
Uma fotografia podia ter acabado a viagem
“Não resisti a fazer uma fotografia a uma central nuclear. Olhei imenso à volta e como não via ninguém, achei que não seria apanhado. Mas estava a ser observado de longe. E claro que fui logo apanhado. Felizmente, tudo se esclareceu, mas não ganhei para o susto”.
Do Irão não foi possível passar para o Paquistão, “como previa, para alcançar a Índia”. A solução foi embarcar a Honda Crosstourer num barco até ao Dubai. E daí, outra vez por via marítima, até à Índia, onde sofreu dois acidentes. “Sobretudo num deles, quando estava a ultrapassar um camião, foi um milagre não me ter magoado”.
A partir da Índia, Francisco explorou alguns dos países à volta, como o Nepal, o Butão e o Bangladesh. Neste, não pôde ir de moto até à capital. “Diziam que motos tão grandes não podia passar”. A solução foi apanhar um comboio. E para sair da Índia, teve de embarcar uma vez mais a sua Honda.
Às voltas pela Ásia com um intervalo…
O destino foi Myanmar. Da antiga Birmânia prosseguiu pelo Laos e Cambodja, mas não conseguiu entrar de moto no Vietname. Este país é um dos raros que continua a não permitir a entrada de viaturas de estrangeiros. A opção foi prosseguir até à Tailândia, onde esteve por duas vezes. “Tive de voltar a Portugal, para trabalhar um bocado, e a moto ficou lá guardada”.
No regresso, acompanhado pela filha, “fiz uma grande viagem a explorar a Tailândia. Foi uma das fases mais agradáveis de toda a viagem. Porque além de apreciar a Tailândia, “levar a minha filha tornou esses momentos especiais”.
Foi a única vez que Francisco Sande e Castro teve companhia, em mais de 800 dias de viagem. “Nunca me senti sozinho”, assegura. “Quem viaja sozinho, acaba sempre por falar imenso com toda a gente que encontra. E também quem vê que chega alguém sozinho, sente como que uma maior disposição para meter conversa”. Por isso, o aventureiro, que já passou dos 60 anos, afirma que conheceu tanta gente, que até “alguns acabaram por ficar amigos”.
Indonésia, Timor e Austrália num relâmpago
Quando deixou a Tailândia, Sande e Castro desceu através da Malásia até Singapura. Da “cidade-estado”, embarcou para Java, na Indonésia. E de ilha em ilha, pelo arquipélago do país muçulmano mais populoso do mundo, chegou a Timor. “Entrei por Timor Ocidental, que é território da Indonésia. Dai prossegui até Timor-Leste”.
Como Dili fica a apenas 600 quilómetros de Darwin, na Austrália, “pus a moto de novo num navio e fui até lá”. Na Austrália, o roteiro começou por orientar-se primeiro para o deserto, bem no coração da ilha-continente. “Fui quase até Alice Springs e depois continuei até à costa leste, que desci até ao sul, terminando a viagem em Melbourne”.
Em Melbourne devia ter-se concluído a fase Austral da viagem. Mas não foi bem assim… A moto seguiu de navio até ao Japão e depois prosseguiu até aos Estados Unidos da América, onde era suposto terminar a expedição.
No Japão foi obrigatório ir à Honda!
“No Japão explorei três das principais ilhas e fui até visitar a Honda, onde conheci mesmo o engenheiro que projectou a Crosstourer”, conta Sande e Castro. “Enquanto visitava a fábrica, fizeram-me uma surpresa: ofereceram-me uma revisão completa e mudaram-me até os pneus e o vidro, que estava muito riscado.
Após nova travessia marítima, pelo Pacífico, a Honda Crosstourer chegou a San Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos da América. “Primeiro, andei algum tempo na Califórnia. Desci até San Diego e subi quase ao Canadá, até ao Parque de Yellowstone.
Mas como não estava preparado para andar em estradas com neve e gelo, alterei a minha rota e atravessei os EUA até à costa leste. E depois, desci aos limites da Florida”, adianta.
Conhecer os Estados Unidos da América, “como conheci, foi uma das melhores surpresas”, garante Sande e Castro. Normalmente, “estamos sempre a dizer mal dos americanos, mas depois desta viagem, tenho de confessar que mudei de opinião”.
É, aliás, norte-americano, um dos grandes amigos que ficaram deste périplo mundial. “Acolheu-me dois ou três dias e a partir daí foi seguindo a minha viagem e com tanto interesse que acabou por insistir em contribuir para a financiar!”
E já agora, América abaixo até ao sul
Estavam percorridos os cerca de 80 mil quilómetros previstos. Mas a vontade de terminar a viagem nos Estados Unidos da América foi morrendo à medida que o ponto final se aproximava.
“Acabei por acordar com a Honda prolongar a viagem. E desci todo o continente americano”, recorda o piloto. Da Florida, Sande e Castro foi até ao Texas e “prossegui México abaixo. Os países da América Central assustavam-me, por tantas indicações quanto aos perigos que corria”, explica. “Afinal, tudo correu sempre muito e cheguei ao Panamá sem conhecer problemas”.
Como a estrada Panamericana é interrompida pela selva, no sul do Panamá, para chegar à Colômbia a solução foi embarcar a moto num barco de contrabandistas. “Esperei imensos dias pelas viagem, pois todos os dias adiavam a partida”, recorda.
A espera foi em Colón, a cidade onde se situa a entrada do Canal do Panamá no Atlântico. É uma cidade muito pobre. E desaconselhada a turistas ocidentais. “O ambiente era pesado, mas não foi o pior lugar onde estive”, garante.
Encantado com a Colômbia, rapidamente Sande e Castro voltou a terras austrais, no sul do continente. Atingida a Patagónia, onde o percurso alterna constantemente entre o Chile e a Argentina, a viagem ainda estava por concluir…
Regresso a casa começou na Cidade do Cabo
Mais uma vez de navio, a Honda Crosstourer chegou a novo destino: a Cidade do Cabo, onde Francisco iniciou a fase final da expedição. De uma assentada, percorreu todo o continente africano. “A primeira fase foi muito tranquila, através da África do Sul, da Namíbia, Botswana, Zâmbia e Angola”.
“Depois, como não consegui o visto para a República Democrática do Congo, pus a moto num barco e fui até Cabinda”. Daqui, continuou pelo antigo Congo francês, onde já tinha estado em 1992. Foi quando participou no Rali Paris-Cidade do Cabo, com um UMM Alter Turbo que partilhou com Cristóvão Leitão.
Não ficaram as melhores memórias de Pointe Noire, pois já não embarcaram para o Lobito, no sul de Angola, para a fase final do rali. “Derretemos o motor todo até lá chegar e era impossível prosseguir”, recorda ainda hoje o navegador de Sande e Castro.
Este regresso ao Congo ficou também marcado pelo reencontro com as dificuldades. A maior de todas foi o tempo. O mau tempo: “Comecei a encontrar muitas pistas cheias de lama e sofri imenso para avançar”, contou o piloto.
O último esforço nas pistas lamacentas
No Gabão e nos Camarões, as chuvadas deixaram os caminhos por vezes absolutamente impraticáveis. “A moto ficou por vezes de tal modo enterrada na lama, que sem ajuda ainda hoje lá estava”, diz-nos. Para logo acrescentar: “tive sempre imensa sorte, pois nos momentos mais complicados acabou sempre por aparecer que ajudasse”.
A tensão subiu ao máximo quando chegou à Nigéria. “Conta-se o pior deste país e tive de entrar por via marítima, desde os Camarões”. Sem saber, Sande e Castro desembarcou num dos lugares mais perigosos do planeta, no Delta do Niger…
“O embaixador de Portugal tinha insistido que não fosse. E até na fronteira que disseram que o risco de ser raptado era enorme”, conta. “Não descansei enquanto não cheguei ao Benin”. E depois Sande e Castro contornou todo o Golfo da Guiné até à Costa do Marfim, “só sentido problemas com a entrada no Ghana”.
O prazo do visto do Ghana tinha expirado e o motard português foi obrigado a voltar para trás, para pedir novo visto. Na primeira tentativa não percebeu que ofereceu 139 USD a uns vigaristas, “que tinham feito um site falso”. Mas à segunda tudo se resolveu!
Dormir ao relento na selva da Guiné
Ainda no coração da África Negra, foi surpreendido pelas estradas de ligação da Costa do Marfim à Guiné Conacri. “Simplesmente não havia estrada e fui avançando por trilhos na selva, com imensa dificuldade”. Ainda passou por um grande susto, quando a moto ficou literalmente encaixada num enorme buraco, em plena selva…
“Não havia ninguém e pensei que estava tramado, mas não! Ao fim de um quarto de hora apareceram uns militares que andavam a patrulhar a zona”. Num instante, Sande e Castro estava de novo a rolar. “O problema foi quando caiu a noite. Estava muito longe do destino, pelo que parei numa pequena aldeia e dormi ali mesmo, no chão…”
O riso contagiante de Francisco Sande e Castro foi, provavelmente, o maior protector do piloto ao longo da viagem. “Diverti-me imenso em todo o lado. E o mais espantoso é que as pessoas mais felizes que conheci eram crianças. E eram miseráveis! Não tinham absolutamente nada e brincavam e riam-se imenso”.
Marcado pelas crianças mais felizes e pobres
“Depois dos 60 anos já ninguém muda, mas isso mudou-me”, admite Sande e Castro. “Cheguei ao fim da viagem com um sentimento muito mais positivo do mundo, do que aquele com que parti.
Passamos o tempo todo a dizer mal de tudo e somos assustados por noticias que só nos falam de coisas más. Mas, afinal, atravessei o mundo todo e conheci sobretudo coisas boas, gente boa, lugares lindos!”
A última dificuldade foi já bem perto de casa. “Sem saber, caí numa das piores fronteiras do mundo. E hoje já o posso dizer com alguma propriedade, pois atravessei imensas”.
Foi na temível fronteira de Rosso, onde o Senegal e a Mauritânia estão divididas pelo rio Senegal. “Ali, percebi que era inútil insistir em ser eu próprio a tratar das formalidades. Enquanto não paguei a um miúdo, ninguém me atendeu…”
Bem que conhecemos essa fronteira. E já há muito que a classificávamos como uma das piores do mundo! Reencontrar Francisco Sande e Castro à porta da sede do Automóvel Club de Portugal, na Rua Rosa Araújo, sempre de sorriso rasgado, foi uma alegria. A Volta ao Mundo em Honda Crosstourer finalmente terminou. Mas as memórias, essas ficam eternas…
Texto: Alexandre Correia