A presença portuguesa na Mauritânia remonta ao século XV, em Arguin, na costa, a norte da capital. Mas em 1461 os portugueses ousaram explorar o interior do Sahara e estabelecer uma feitoria na região de Ouadane. Nem que fosse por isso, tínhamos de ir até lá com o Peugeot 3008. E fomos!…
Ouadane é um ponto minúsculo no mapa da Mauritânia e quem não souber onde se situa, terá mesmo dificuldade em encontrá-lo. Esta cidade, considerando que nestas paragens qualquer povoação é geralmente referida como uma cidade, fica ainda mais “para lá” de Chinguetti, ou seja, para a alcançarmos, temos de penetrar bastante para o interior do deserto.
Aliás, o acesso é parcialmente comum ao de Chinguetti, pois tomamos a pista que sai de Atar em direcção ao “passo de Nouatil”, passagem estreita numa garganta das montanhas de Azougou. É aqui que a estrada descreve alguns apertados ziguezagues para rapidamente alcançarmos os planaltos e a partir daí não há nada que enganar: o único entroncamento desta pista distribui o trânsito para Ouadane e Chinguetti.
O ponto em que os caminhos divergem situa-se a perto de uma vintena de quilómetros de Chinguetti e o troço desde o entroncamento até esta cidade é o único em que a pista troca o piso duro e pedregoso, em “chapa ondulada”, por areia, mais suave ao rolamento dos veículos, mas particularmente traiçoeiro, sobretudo para os modelos como o nosso Peugeot 3008, apenas com tracção dianteira.
Percorrendo a pista que a partir de Atar sobe aquela que é considerada a “grande montanha” da Mauritânia – recordamos que as elevações são escassas na paisagem deste país, encontrando-se algumas montanhas apenas no norte e no centro – entramos como que num beco sem saída, pois para lá destas cidades não há mais pistas.
Há sim trilhos de areia, que permitem cruzar os imensos cordões de dunas, como os que durante as últimas edições africanas do Rali Dakar fizerem suar imenso os concorrentes e que ainda agora são um dos cenários de eleição do África Eco Race, a competição de todo terreno que tomou o lugar deixado em aberto nesta rota desde a Europa até à capital do Senegal, depois da mítica corrida se ter transferido para a América do Sul.
Zona vermelha a clarear para o laranja
A segurança, ou melhor, a aparente falta dela, foi o factor determinante para a ASO, o organizador do Rali Dakar, decidir abandonar África. Isso aconteceu em 2008, ano que ficará para sempre marcado pela anulação da prova, apenas dois dias antes da partida de…Lisboa.
As repercussões do cancelamento do Rali Dakar foram particularmente dramáticas para a Mauritânia. Nesse ano, a prova deveria permanecer sete dias neste país, estimando-se que os prejuízos imediatos tenham sido a perda do equivalente a mais de 20 por cento do P.I.B. mauritano. A prazo, os prejuízos foram bem mais expressivos pois, ao colocar o país na lista dos mais perigosos, o turismo caiu para níveis tão baixos que a actividade perdeu toda a sua expressão. E a região do Adrar, que então era a mais privilegiada desse ponto de vista, foi de longe a mais afectada com essa quebra. A operação de voos charter que durante seis meses ligava semanalmente Paris a Atar e que trazia uma média de 25.000 turistas cada ano, foi abruptamente cancelada assim que o destino foi colocado sob alerta vermelho em termos de segurança.
As dezenas de pequenos alojamentos, quase todos de uma simplicidade “franciscana”, para não dizermos miseráveis, rapidamente fecharam as portas, por absoluta falta de turistas, tal como aconteceu aos poucos restaurantes vocacionados para servir os estrangeiros. E os guias turísticos, que a dada altura pareciam ser já uma praga nesta zona, pois era raro aquele que não se oferecia com conduzir os estrangeiros em exclusivas visitas guiadas a todos os lugares onde era garantido que iriam encontrar…outros turistas!
Recentemente, as autoridades francesas decidiram rever o grau de perigosidade deste recanto da Mauritânia, que passou de vermelho para laranja. E não deixa de ser quase hilariante que esta noticia tenha chegado ao deserto como se isso significasse uma recomendação para visitar a região. De modo algum, o nível ainda é bastante elevado, nesta matéria. A reclassificação do nível de perigo abriu perspectivas de retoma do turismo, animando as poucas pessoas que por aqui ainda confiam neste sector como fonte de rendimentos. Fala-se mesmo de negociações para que os aviões voltem a trazer passageiros directamente para Atar, mas nada de concreto ainda foi assegurado.
Daí que nos sentimos uns autênticos privilegiados enquanto a Expedição Todo Terreno Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau nos trouxe, por duas vezes, a esta região. Na primeira escala, ainda durante a fase descendente, rumo a Dakar, ainda encontrámos um pequeno grupo de chineses a visitar Chinguetti, mas quando voltámos lá, não havia mais nenhuns turistas. Éramos apenas dois e tudo e todos pareciam estar à nossa disposição…
As duas faces da “exclusividade”
Os nossos anfitriões tinham-se ausentado, numa breve deslocação a Nouakchott e só nos encontrámos por azar, quando já estávamos a caminho de Ouadane. Dizemos por azar, porque num troço de areia, o tal entre Chinguetti e o desvio para Ouadane, conseguimos furar um pneu – o de trás, do lado direito – ao pisarmos em cheio uma pedra pontiaguda que até vimos e nos fez pensar: “esta é daquelas boas para rebentar um pneu…” Era mesmo!
Tamanha exclusividade revelou-nos duas faces bem distintas. Uma, a egoísta, foi a de sentirmos que só nós é que desfrutávamos do que nos rodeava. Desde as paisagens às pessoas e mesmo aos equipamentos, como o esplendido Auberge La Gueïla, onde a cada estadia fomos os únicos hóspedes. No regresso, isso deu-nos até a sensação, bastante confortável, de estarmos em casa. Na nossa casa, entenda-se. Porque houve mesmo um momento em que nem os donos da casa se encontravam por lá. Sylvette Cerisey e Sidi Khattry Ababek, ela francesa, com uma vida anterior passada em lugares e ambientes cheios de agitação, como Singapura e o mundo da alta finança, ele mauritano, apaixonado por automóveis, por todo terreno e por viajar através do deserto, onde se aventura sempre que pode.
Quando estávamos a terminar a substituição da roda, cruzamo-nos com o Toyota Land Cruiser HDJ100 de Sylvette e Sidi. Como ainda tínhamos outra roda sobressalente e uma roda de emergência, a situação não nos pareceu grave. Sidi encarregou-se de levar o pneu furado para Chinguetti, onde ia verificar se teria reparação (não teve…) e nós marcámos encontro com ambos para o dia seguinte, quando regressássemos de Ouadane.
Ainda tínhamos pela frente cerca de 120 quilómetros, sempre por pista de terra e ao retomarmos a marcha, fomos suaves a carregar no acelerador, ao mesmo tempo que redobramos a atenção ao piso e a todas as irregularidades. Claro que pouco depois já nem nos lembrávamos do furo e o Peugeot 3008 voltou a rolar sistematicamente acima dos 100 km/h. Se fosse uma corrida, teríamos recuperado o tempo perdido com a paragem para trocar a roda. E mesmo com algumas paragens para fotografar a paisagem, nós mesmos e a bela máquina que a todos continuava a encantar, conseguimos a proeza, rara em toda a viagem, de terminar a jornada ainda com a luz do dia.
Mas foi por pouco, pois ao descermos para Ouadane esperámos pelo pôr do sol mesmo junto ao marco que assinala os limites da cidade. Lá em baixo, numa das primeiras casas, antes mesmo de cruzarmos o primeiro dos dois rios que rompem o vale em redor da cidade, cada qual com o seu oásis, Zaïda esperava-nos. E abria-nos as portas do Auberge Vasque para uma estadia memorável e…solitária…
Texto e fotos: Alexandre Correia