O quinto dia da Expedição Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau começou ainda o sol estava a nascer por trás do montes que rodeiam Sidi Ifni.
Saímos tão cedo que só ao fim de uma hora de viagem, quando alcançámos a cidade de Guelmim, tivemos oportunidade de fazer aquilo que costumamos fazer todas as manhãs: tomar um bom pequeno almoço. Sim, porque nestas viagens, nunca sabemos quando voltamos a comer e o pequeno almoço é, desde logo, fundamental para começarmos bem o dia.
Entrámos em Guelmim quando já os estudantes da universidade local se dirigiam para as aulas, todos bem arranjados, que essa ideia de gente com ar de maltrapilho é cada vez mais uma imagem errada da realidade do Reino de Marrocos, que tem conhecido uma evolução cada vez mais acentuada, a todos os níveis. Já reconfortados com um excelente pequeno almoço, aproveitámos a abertura do comércio, logo às oito da manhã, para ir comprar a única pela de equipamento que considerávamos indispensável e que ainda não estava a bordo do Peugeot 3008: uma pá! Isso mesmo, uma pá daquelas que se usam nas obras ou, se necessário, nos percursos de areia, se ficamos com as rodas enterradas…
Da fronteira do “protectorado” francês…
Bem no sul, Guelmim foi durante séculos um ponto de cruzamento das Azalaï, o nome dado às caravanas de dromedários que desde tempos imemoriais cruzavam duas vezes por ano o Sahara, ligando o interior do Ténéré a Marrakech.
Eram normalmente cerca de um milhar de animais que vagarosamente iam cruzando o deserto e que faziam escala em Guelmim para um abastecimento final antes de se embrenharem no Sahara, quando iam em direcção ao interior, ou para um merecido repouso antes de completarem a viagem, quando a percorriam no sentido da cidade imperial de Marrakech.
A regular passagem das Azalaï fez desenvolver em Guelmim um importante mercado de gado que ainda hoje existe e onde os dromedários são os animais mais procurados. Mas, a história desta cidade passa também por ter sido a última fronteira, no sul, do antigo Protectorado Francês de Marrocos, que durou até 1956.
Daqui em diante, rumo ao sul, estendia-se o Sahara Espanhol, cujos limites também foram sendo redesenhados, à medida que o tempo foi passando, desde que Marrocos se tornou independente e até à célebre Marcha Verde, um movimento popular, impulsionado pelo Rei Hassam II, que levou cerca de 350 milhares de marroquinos, civis, a invadir a colónia espanhola do deserto, totalmente desarmados.
Isso aconteceu em Novembro de 1975, precisamente quando o General Franco, que desde o final da Guerra Civil governava a Espanha e estava prestes a morrer, deixando por escassos momentos um vazio de poder, até à nomeação do seu sucessor, o Rei Juan Carlos.
E como “a ocasião faz o ladrão”, esta invasão pacífica resolveu a questão da soberania marroquina no Sahara Ocidental em muito pouco tempo: a conquista deu-se em Novembro de 1975 e em Março de 1976 os últimos espanhóis acabaram de abandonar o território.
E começou então outra história, que ainda não acabou de ser escrita.
Até à fronteira do Sahara espanhol
Mas recuando ainda aos dias da Marcha Verde, o ponto de concentração da imensa multidão que entrou pelo Sahara Espanhol com uma bandeira marroquina na mão foi a cidade costeira de Tarfaya.
Antes dos acordos com o Reino de Marrocos, na sequência do confronto armado em Sidi Ifni, que já contámos numa destas crónicas, esta cidade chamava-se Villa Bens e tinha nascido em redor de uma fortaleza espanhola, construída em 1916, muito pela pressão dos franceses, que exigiam aos espanhóis uma maior presença no território que supostamente dominavam.
Na ponta do Cabo Juby, onde a costa atlântica por momentos deixa de ter grandes falésias para se abrir um amplas praias, já antes dos espanhóis tinham passado os ingleses, que da breve passagem deixaram uma enorme construção dentro de água, cujas ruínas ainda hoje são uma referência histórica em Tarfaya.
O aspecto mais importante da história desta cidade, mesmo antes de ter sido fundada a Villa Bens, foi a pista de aviação aberta por trás da fortaleza espanhola, hoje já desactivada e a caminho da mais do que provável ruína. O aeródromo, em terra, constitui um ponto de passagem fundamental para os voos da Aeropostale, a companhia francesa que assegurava a distribuição do correio aéreo entre a Europa, a partir de Toulouse, e a antiga capital da África Ocidental Francesa, primeiro Saint-Louis du Senegal e depois Dakar. Daí, o correio seguia em hidroaviões através do Atlântico até à costa do Brasil, onde a tarefa era completada por monomotores que seguiam para os países circundantes, numa ligação que atravessava os Andes até Santiago do Chile.
Estes voos operaram durante cerca de uma década, entre o início dos anos 1920 e 1930, até à falência da companhia. E entre 1927 e 1929, foi destacado como chefe de escala para o aeródromo do Cabo Juby um aviador francês que se tornaria ainda mais célebre como escritor. Chamava-se Antoine de Saint-Exupéry e começou a escrever para ocupar o tempo entre cada escala semana dos aviões da Aeropostale, ou enquanto não andava pelo Sahara a negociar com os berberes o resgate de aviadores raptados, depois de terem feito aterragens de emergência. Essa vivência no Cabo Juby mudou por completo o modo como Antoine de Saint-Exupéry passou a encarar a vida e isso reflectiu-se nas suas obras, que ainda hoje são uma referência.
O pequeno Museu Antoine de Saint-Exupéry, em Tarfaya, é tão modesto quanto interessante e foi com um enorme prazer que ali passámos algum tempo, lendo atentamente os painéis que contam a historia da operação do correio aéreo francês nesta rota, bem como as imensas fotografias que os ilustram. Percebemos, pelo modo emotivo como o director do museu nos recebeu, que são raros os visitantes. Sobretudo os estrangeiros e não franceses. Ficou prometida nova visita, no regresso a casa.
Mas, entretanto, o nosso Peugeot 3008 já ia a caminho dos 4000 quilómetros percorridos e ainda havia muito Sahara para percorrer…