Há diversas interpretações para o significado da palavra Nouakchott, o nome da capital da Mauritânia. A que mais nos toca é a do “lugar onde sopra o vento”, nem que seja porque é isso mesmo o que sentimos quando chegamos a esta cidade, que ainda vai celebrar 60 anos de existência…
Visitámos Nouakchott inúmeras vezes e hoje, sempre que voltamos, descobrimos novas coisas e, sobretudo, percebemos que o crescimento da cidade é imparável. Mas jamais deixaremos de nos lembrarmos da primeira vez que aqui chegamos, há longos anos.
Embora a estrada para o norte, que liga até à fronteira de Marrocos, já estivesse aberta à circulação desde 2005, durante alguns anos fugimos sempre ao asfalto, orientando-nos até às costa, para alcançarmos Nouakchott conduzindo junto ao mar, por trilhos de areia, devidamente balizados com marcos que íamos encontrando à cadência de alguns quilómetros. Sempre que avistávamos mais uma dessas estacas, era uma alegria, tal a sensação de alívio por confirmarmos que, independentemente dos dispositivos de navegação que dispuséssemos, estávamos no caminho certo.
Navegar à vista
O maior desafio foi quando decidimos não ligar sequer o GPS e percorrer esta rota, rigorosamente no limite mais ocidental do Sahara, seguindo as referencias que guardámos na memória e que essas balizas iam certificando.
Não nos perdemos nessa experiência, nem havia como isso pudesse acontecer: o mar era o limite e, na pior das hipóteses, talvez apenas chegássemos à orla do Atlântico mais a norte do que seria ideal. Devíamos apontar para uma pequena baía, com um acampamento de pescadores, no limite superior do Parque Nacional do Banco de Arguin, uma área protegida, onde as águas são muito pouco profundas, mas riquíssimas em peixe, que alimentam não só as comunidades locais de pescadores, como sobretudo milhares de pássaros, que ali ocorrem sistematicamente e cuja presença despertou o interesse das autoridades para a preservação deste frágil ecossistema.
Para atingirmos essa baía, a referencia era seguir os traços dos rodados das pick-up’s dos pescadores e orientarmo-nos em direcção ao mar. E a partir desse ponto, já não havia como nos enganarmos: rolar para sul, contornando os diversos “chotts” que fossemos encontrando, pois estas planícies, normalmente de superfície muito lisa e convidativa a acelerarmos, são, na verdade, a mais temível das armadilhas do deserto.
Trata-se de lagos salgados, que sob uma capa de lama seca, geralmente escondem água e uma vez revolvida sem cobertura, os veículos como que são engolidos por uma lama espessa, que parece movediça. Uma das referências neste trajecto eram os destroços de um velho camião frigorífico Mercedes-Benz, que se terá desviado do “corredor” marcado na travessia de um destes “chotts” e nunca mais dali saiu. Ano após ano, lá continuava, como se estes destroços fossem uma baliza, que tinha a vantagem de ser observada bem de longe. Encontrar os restos deste camião significava ainda que em breve voltaríamos a aproximar-nos da costa, para chegarmos a Mammghar, a aldeia de pescadores que assinala o limite sul do “Banc D’Arguin”. Então, pagávamos o bilhete de passagem pelo parque, numa casa de madeira onde à porta estava exposto todo o esqueleto de uma baleia, e no fim da aldeia seguíamos pela praia, chegando a Nouakchott sempre a rolar à beira-mar, por vezes mesmo na linha da rebentação.
Este percurso, que durante anos era a única via de comunicação entre a capital e a segunda cidade da Mauritânia, Nouadhibou, bem na ponta norte, na costa, hoje caiu em desuso. Antes, o trânsito era constante e com todos os tipos de veículos, mesmo muitos automóveis normais, que a maioria das pessoas não espera nunca ver passar num percurso de areia. Como havia sempre carros a passar, todos se ajudavam uns aos outros e o verdadeiro perigo era não respeitar a regra de somente conduzir na praia durante o período da maré baixa. O percurso do Rali Dakar chegou a percorrer este troço pela praia e muitos ainda se recordam das imagens do buggy do francês Jean-Louis Schlesser a ser sugado pelas ondas, que momentos depois devolveram o carro a terra firme, com o piloto a prosseguir caminho, como se nada tivesse acontecido. Mas, por vezes, acontecia. Uma das referencias mais engraçadas desta fase do percurso era o destroço de um autocarro, que uns italianos perderam, ao ficarem enterrados na areia, precisamente no limite da rebentação; assim que a maré começou a subir, tornou-se impossível retirar o veículo, que ali ficou, à mercê das ondas, num lento processo de destruição. Chegámos a passar por lá e ver ainda a carroçaria completa. Um ano depois, somente subsistia a estrutura da carroçaria e a última vez que o encontramos, o que vimos foi surreal: não restava senão o chassis, submerso, mas a coluna da direcção e o volante permaneciam intactos, como se flutuassem no mar…
A maior dificuldade era a uns cerca de 80 quilómetros de Nouakchott, numa passagem em que as dunas, enormes, vinham encostar-se ao mar, deixando livre uma faixa de areia com apenas alguns metros, no ponto da maré mais baixa. E logo a seguir, grandes rochas junto ao mar só permitiam que as contornássemos durante breves momentos, antes que a água voltasse a subir. Algumas vezes, tivemos de esperar pela maré seguinte. Nunca foi um sacrifício, pois sempre aproveitámos para ir a banhos, no mar, que embora ali seja o Atlântico, como são águas pouco profundas, a temperatura é sempre agradável.
Também por tudo isto, nunca chegámos a Nouakchott, vindos do norte, da fronteira de Marrocos, com a luz do dia. Nem agora, que fizemos a viagem, de quase 500 quilómetros, directamente pelo asfalto. Não por receio das capacidades do nosso Peugeot 3008. Mas porque o risco de demorarmos demasiado tempo era bastante elevado. Sobretudo sem dispormos de um veiculo de apoio, nos dias de hoje esta ligação fora da estrada é menos aconselhável, de tão pouco frequentada, somente por alguns veículos de pescadores, como sempre, e uns quantos aventureiros, que não resistem ao apelo. No nosso caso, já tínhamos decidido que as experiências fortes em areia ficavam reservadas para a fase de regresso a casa, quando retornássemos à Mauritânia, já rumo ao norte. Agora, o caminho ainda era até Bissau, que continuava longe.
Descobrir a jovem capital mauritana
Quando chegávamos pela praia, a capital mauritana anunciava-se pelas centenas de barcos de pesca, longos e esguios, dispostos ao longo da praia, mesmo antes do porto. Pela estrada, a referencia de que já só faltam umas escassas dezenas de quilómetros é quando entramos numa espécie de “auto-estrada”, com duas amplas faixas para cada sentido, separadas entre si por uma larga faixa de terra, como que de reserva para o momento em que for necessário alargá-la para três vias. Esta “auto-estrada” foi recentemente alongada para norte, para se estender até ao desvio para o novo aeroporto, a cerca de 30 quilómetros da cidade.
Foi aqui que encontrámos os últimos postos de controlo antes da capital. Passava das 22h30 e as indicações que tínhamos era de que somente nos poderiam servir o jantar se chegássemos à “guest-house” onde reservámos alojamento até às 23h00. A fome e o sistema de navegação do ipad do nosso companheiro Luís Jerónimo aliaram-se perfeitamente para chegarmos à casa de Jeloua no momento certo, sentando-nos à mesa no último minuto.
Os quilómetros finais foram como se estivéssemos a viver um daqueles filmes de “suspense”, em que o contador marca o tempo que falta para a bomba explodir, se não cortarmos o fio “certo” para a desactivar. O “navegador” do ipad traçou o caminho mais directo, que implicou desviarmo-nos do asfalto e seguir por ruas não pavimentadas, em areia, sem qualquer iluminação que não os faróis do Peugeot 3008. Num momento ou noutro, ainda sentimos a areia mais mole a prender-nos, como se estivéssemos prestes a cortar o fio amarelo; mas decidimo-nos pelo vermelho e a bomba não explodiu, por uns segundos. Foi assim que nos sentimos, quando nos sentámos à mesa. Já tínhamos telefonado a confirmar o jantar e a escolher a ementa, indicando que às 23h00 estaríamos na mesa, ou pagaríamos tudo, mesmo que não fossemos servidos. E fomos, muito bem servidos, aliás…
Só na manhã seguinte os nossos companheiros desta fase da viagem, Luís Jerónimo e Pedro Nogueira Simões, puderam perceber onde estavam. Porque o modo como chegámos a casa foi algo surreal.
Nouakchott é uma cidade especial. Não o dizemos porque nos surpreende com belos edifícios e outros que tais, mas sim por ter imensa vida, quase como se não dormisse. Há lojas abertas a noite toda e o que eles não sabiam é que a generalidade dos restaurantes permanecem abertos até à meia-noite, mantendo-se diversos, os suficientes para nos permitir escolher, ainda com serviço de refeições até pelo menos à uma da madrugada.
Nascida de uma ideia da administração da África Ocidental Francesa e da comissão de notáveis das diversas tribos mauritanas, que foi formada em meados da década de 1950, para preparar a transição para a independência do país, decidida formalmente num referendo realizado em Setembro de 1958 mas, na verdade, já idealizada desde 1956, quando os mesmos franceses saíram de Marrocos…
Os notáveis que foram chamados a pronunciar-se sobre a questão da capital, estavam de acordo com o governador francês: nenhuma das poucas cidades que já existiam na Mauritânia tinha condições para ser elevada a capital. Pelo que a solução foi inventar uma cidade. E o lugar escolhido foi um recanto à beira-mar, cerca de duas centenas de quilómetros a norte do rio Senegal, que iria ser a linha de fronteira natural.
Neste lugar, “onde sopra o vento”, havia apenas um pequeno forte, de importância tão reduzida quanto a sua guarnição: uma quinzena de atiradores senegaleses, negros, comandados por um sargento francês. O posto era tão “reles” que nem um oficial merecia ter. Mas tinha uma pista de aviação mesmo ao lado, onde ocasionalmente aterravam aparelhos, especialmente os do serviço de correio aéreo francês, que operou até à segunda metade da década de 1930, e que ali pousavam em situações de emergência, sabendo que ao abrigo do forte estariam seguros, o que nem sempre sucedia quando tinham de aterrar no Sahara, sem poderem escolher onde.
Em 1950 havia já um pequeno acampamento instalado com caráter permanente junto ao forte. O plano do arquitecto francês André Leconte, escolhido para dirigir o projecto da nova cidade, começou por desenvolvê-la em dois núcleos, um partindo do posto militar, que é hoje o bairro de Ksar, o mais antigo, e outro a partir da enorme mesquita, que não existia. A primeira pedra foi lançada ainda no final de 1958 e a cidade estava pronta a inaugurar em Novembro de 1960, quando foi declarada a independência.
O projecto estimava acolher uma população que em 1970 rondaria as 8000 pessoas, mas esse número multiplicou-se por cinco e hoje cerca de um terço dos mauritanos vivem em Nouakchott, o que significa que a cidade já ultrapassou o milhão de habitantes. E para acolhê-los, o crescimento além de constante, nunca mais foi ordenado, senão no projecto original. E mesmo este, o tempo encarregou-se de apontar os defeitos, inúmeros e até mesmo graves. Parte da cidade foi construída sobre um cordão dunar não estabilizado e outra em zonas que estão situadas abaixo do nível médio do mar, o que hoje se reflecte em problemáticas inundações sempre que há chuvas intensas, deixando bairros inteiros totalmente isolados.
As grandes avenidas, traçadas no plano original de André Leconte, são complementadas com outras igualmente asfaltadas, mas as ruas que se infiltram pelo interior dos bairros, sejam eles habitacionais, sejam dedicados ao comércio, geralmente permanecem em terra. Ou pior, em areia. E como a cidade é quase constantemente açoitada por ventos de areia que sopram desde o interior do Sahara, quase sempre há areia mole no caminho. Aqui, muito antes de irmos rolar nas dunas de Chinguetti e Ouadane, nos confins do deserto, o nosso Peugeot 3008 passou pelo teste, superando com nota positiva esta etapa urbana, absolutamente fora do comum. Afinal, Nouakchott não é mesmo uma cidade como as outras…