Para quem desce no sentido norte-sul ao longo da costa africana, a cidade de Dakhla é a última que encontramos antes de chegarmos à Mauritânia.
Chegámos lá tarde, de noite, depois de uma maratona cansativa, em que o Peugeot 3008 percorreu de uma assentada para cima de um milhar de quilómetros. Erguida na ponta de uma extensa península, mais comprida do que larga, só vai a Dakhla quem quer mesmo lá ir, pois alcançamos a cidade percorrendo uma estrada sem saída, de quase 40 quilómetros em que não raras vezes temos a sensação de conduzirmos numa ilha, já que olhando à direita e à esquerda, só vemos mar.
*Comprada* pela Coroa Espanhola
Esta cidade, fundada pelos espanhóis, em 1884, quando se instalaram nestas paragens, foi o ponto de entrada dos nossos vizinhos na costa africana do Sahara, por onde os nossos navegadores tinham passado repetidamente, assinalando isso atribuindo nomes portugueses aos lugares que foram marcando nos mapas que se começaram a desenhar. O Cabo Bojador, um pouco mais a norte, é um desses exemplos, tal como o Cabo Branco, mais a sul, no limite da fronteira actual entre Marrocos e Mauritânia, ou ainda, entre ambos, a pequena baia do Portorico e a enorme baia de Angra de Cintra.
Reza a história que os espanhóis compraram todas estas terras de deserto ao chefe de uma tribo de berberes, nómadas, que reclamavam o seu domínio, mas que por umas moedas de ouro, entregaram à Coroa Espanhola, num acto devidamente oficializado por um notário, que veio expressamente de Canárias, ligeiramente mais a norte, para testemunhar o negócio.
Estas terras que nunca interessaram a Portugal, tinham outro significado para Espanha: detê-las permitiria aumentar a defesa das ilhas Canárias, combatendo logo no Sahara os piratas e corsários que se escondiam nas baias mais abrigadas, como a da península do Rio do Ouro; daí terem começado por aí fixar o primeiro aquartelamento militar espanhol.
Com o advento da aviação, Villa Cisneros, esta primeira cidade, que hoje conhecemos com o nome de Dakhla, também contou com uma pista de aterragem, que ao longo dos tempos foi crescendo e sendo melhorada, subindo de nível, para aeródromo e depois para aeroporto, hoje com uma extensa pista asfaltada, com mais de três quilómetros de comprimento, que atravessa quase toda a cidade, desde a entrada até muito perto da ponta, junto ao mar. Nessa pista, chegaram a aterrar os aviões da TAP que nos primórdios da companhia portuguesa voavam desde Lisboa até Lourenço Marques, actual Maputo, em Moçambique, com múltiplas escalas. A de Villa Cisneros era a segunda, depois de Casablanca e Lisboa.
Foi de lá que a 12 de Janeiro de 1976 partiu o último espanhol, o comandante da guarnição militar, que com a sua saída fechou o ciclo colonial, extinguindo o Sahara Ocidental Espanhol, parte integrante de uma região muito mais vasta, a África Ocidental Espanhola, que além deste território no deserto, contou com um retalho de diversas áreas espalhadas mais a norte, por onde esta Expedição Todo Terreno Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau, passou primeiro, como Sidi Ifni, mas também um parte significativa da faixa costeira a norte de Rabat e até Tânger, além de quase toda a costa mediterrânica, onde ainda hoje a bandeira espanhola permanece nalgumas pequenas ilhas e, sobretudo, em duas grandes cidades: Ceuta e Melilla.
Três anos sob administração mauritana
Antes de partirem, os espanhóis acordaram a divisão do Sahara Ocidental entre Marrocos, a quem coube o sector norte, e a Mauritânia, que tomou conta do sul, instalando-se em Villa Cisneros. A cidade mudou imediatamente de nome e tornou-se na capital da nova província de Tiris al-Gharbiyya.
Mas isso foi tudo menos pacífico. A guerrilha saharaui, organizada militarmente sob a Frente Polisário, fez a vida negra aos mauritanos, que ao fim de três anos de guerra, que não conseguiam dominar, assinaram um acordo de paz e retiraram-se para as suas fronteiras anteriores, conforme tinham sido estabelecidas pela França, em 1960, quando também se extinguiu a África Ocidental Francesa, tornando independentes inúmeros países que até então estavam todos agregados num imenso território, que se estendiam desde a costa sul do Sahara Ocidental até ao Golfo da Guiné – com apenas duas excepções, a Guiné-Bissau e a Gâmbia, sob controlo português e britânico – e daí pelo interior do continente, até ao Sudão.
E quase quatro décadas de integração marroquina
O que a Frente Polisário não contava é que a partida dos mauritanos resultasse na chegada dos marroquinos, que não perderam tempo a tomar posse também desta região, que desde então reivindica como sua, muito embora todo o Sahara Ocidental permaneça sob a alçada das Nações Unidas e do referendo que há algumas décadas anda a ser preparado, para que os nativos escolham através dos votos se querem mesmo ser marroquinos, ou independentes, acolhendo-se sob a República Árabe Saharaui Democrática, que tem por capital um acampamento na Argélia e carece de reconhecimento internacional, mesmo por parte da generalidade dos países africanos.
No final dos anos de 1950, quando Espanha entendeu que era importante reforçar a sua presença nesta região, sob o risco de perdê-la, como acabaria por acontecer, Villa Cisneros era uma pequena cidade, com pouco mais de centena e meia de casas, a maioria delas afectas à actividade militar. Traçou-se então um plano de expansão urbana que impulsionou fortemente a cidade, cujo nome foi uma homenagem ao célebre Cardeal Cisneros, o grande cérebro do período mais duro da inquisição em Espanha, no tempo dos Reis Católicos, Isabel e Fernando. Dois anos depois de começarem as obras de expansão, Villa Cisneros perdeu o estatuto de capital do Sahara Ocidental Espanhol, que daí até à extinção desta colónia se transferiu para El-Aayoun, a actual Laayoune.
Curiosamente, o verdadeiro crescimento de uma e outra cidades deu-se já sob a bandeira marroquina, com um impulso ainda mais evidente nos últimos anos. Ao ponto de hoje praticamente ter desaparecido todo o património construído pelos espanhóis na antiga Villa Cisneros. Do pouco que resta, destaca-se apenas a Igreja Católica, um edifício moderno, sem grande imponência, construído no centro, mesmo diante do hotel onde nos instalámos, para um bem merecido descanso…